O tempo vivido: Bergson sobre a duração
Me interesso por uma coisa que costumo chamar de tempo subjetivo, ou tempo mental. Trata-se do tempo tal como ele se dá, tipicamente, a nós.
Não é o tempo dos relógios e dos calendários.
Nos relógios, o ponteiro só vai para a frente. Tic, tic, tic. E só fica num certo lugar de cada vez.
Nos calendários, cada dia tem seu quadradinho.
No tempo da mente, o ponteiro é gordinho e borradinho; os dias visitam os quadradinhos dos seus parentes.
O tempo da mente, então, tem suas peculiaridades. O convidado do dia para nos ajudar a pensar sobre essas esquisitices é o filósofo francês Henri Bergson (1859–1941).
Bergson, como bom filósofo do mundo steampunk da virada do século 19 para o século 20, se interessa pelo fluxo da consciência. Seu amigo William James estava na mesma.
Os Ensaios de Berkeleyanismo Radical de William James
Por esses dias, reli os Ensaios de Empirismo Radical, de William James. Nesta segunda leitura, consegui ver mais da paisagem que se esconde por detrás da bruma steampunk. Na primeira vez que li, me pareceu que eu estava lidando com uma espécie de pré-história da filosofia da mente. O problema central – a relação corpo-mente – se fazia presente, mas boa …
Mas, enquanto James pensava mais na psicologia do que na metafísica do tempo, Bergson fez metafísica a partir da psicologia popular, filosofia a partir do senso comum. Na gíria dos filósofos analíticos, Bergson fez metafísica descritiva e apresentou a realidade a partir do modo como as pessoas em geral pensam sobre a realidade.
E como é o tempo na cabeça das pessoas?
Bem, nas nossas cabeças, é como se o ponteiro do relógio fosse borrado, e é como se os dias caminhassem dos seus quadradinhos para visitar os quadradinhos dos outros dias. O mesmo para as semanas e os meses. É por isso mesmo que compramos relógios e recebemos folhinhas de calendário do açougueiro. Compramos os relógios porque, nos relógios, os ponteiros, admiravelmente, não estão borrados. Aceitamos os calendários de açougues vizinhos porque, intrigantemente, cada dia e cada mês estão parados e quietos nos seus quadradinhos. Talvez não admiremos o açougueiro do bairro pelo corte da carne, mas voltamos a sua casa de carnes ano após ano porque o homem é capaz de pregar cada dia no seu quadrado.
Nas nossas cabeças, passado, presente, e futuro se visitam, conversam entre si. No calendário, cada dia é um prisioneiro fechado na sua cela, uma lagarta no seu casulo. Na mente, cada dia é uma borboleta.
Por que o tempo vivido é assim?
É claro que eu não sei a resposta a esta pergunta. Ainda assim, tenho trabalhado com a hipótese da viagem no tempo mental.
A ideia básica é que usamos a percepção e a memória para imaginar possíveis situações futuras. A partir dos cenários imaginados, tomamos decisões. Ou seja, viajamos no tempo mental para deliberar e agir.
Para descobrir mais sobre como os filósofos vieram a pensar na memória a partir da noção de viagem no tempo mental, dê uma olhada neste relato do filósofo e neurocientista
:Ao viajar no tempo mental, podemos estar simplesmente revisitando um bom momento do passado, ou sonhando acordados para fugirmos do tédio do aqui e agora, ou planejando o futuro. Ou sonhando. Ou… Fazemos muitas coisas atráves de “viagens” no tempo mental.
O tempo mental é o tempo para nós, o tempo vivido. Se você, como Bergson, busca descrever a realidade a partir da folk ontology, este é, também, o tempo, ponto. O tempo dos relógios seria outra coisa. Algo muito útil, mas outra coisa.
Aprendi muito sobre tempo e memória em Bergson ao trabalhar com a pesquisadora Úrsula Lied. Recentemente, meu interesse se reacendeu quando li uma coletânea despretensiosa de textos de Bergson sobre a consciência. Escrevi páginas e páginas de anotações com minha mui amada máquina de escrever Olympia SM9. Depois, li a recente e mui elogiada biografia de Bergson escrita pela
. Quero falar mais sobre este livro nas próximas semanas.Meu plano é falar, hoje, sobre Bergson e o tempo vivido, o tempo mental. Nas próximas semanas, falarei sobre as contribuições de Bergson para o pensamento sobre a consciência e – ora, vejam – o riso.
O conceito que Bergson usa para falar do tempo é duração. Mas Bergson usa a palavra “duração” de maneira peculiar.
No dia a dia, falamos da duração de um clique no microondas (30 segundos), da duração de uma aula (50 minutos), da duração de uma viagem (quatro horas) etc.
Não é isso que interessa a Bergson. O foco é algo que venho chamando de tempo subjetivo.
O que é o tempo subjetivo?
O tempo subjetivo, ou tempo mental, é a experiência psicológica do tempo, que se distingue do tempo objetivo medido por relógios e calendários.
Embora compartilhe com o tempo objetivo as características de ordem (sequência de eventos) e progresso (passagem de um momento a outro), o tempo subjetivo apresenta diferenças importantes:
A duração dos eventos é maleável na experiência mental – um mesmo período pode parecer mais longo ou mais curto dependendo do nosso estado psicológico e interesse na atividade.
Na memória episódica, o tempo é sistematicamente comprimido – eventos que duraram minutos podem ser rememorados em frações de segundo, sem que isso prejudique a re-experiência da temporalidade original.
Além disso, o tempo subjetivo diferente do tempo objetivo, pois permite “viagens” ao passado através da memória e ao futuro através da imaginação, ainda que nosso corpo permaneça ancorado no momento presente.
E, no tempo subjetivo, as experiências são matizadas por eventos reais ou possíveis – passsado, presentes, ou futuros – que não estão se dando lá fora da nossa mente, no aqui e agora do mundo.
Assim sendo, o tempo subjetivo não diz respeito ao que os físicos chamam de tempo. O tempo da física é uma de quatro dimensões. Bem, o tempo, entende Bergson, é pessimamente descrito pela teoria 4D, mas mui bem experienciado por cada um de nós – inclusive no que diz respeito a “distorções”, as quais têm a ver com o que Bergson entende por duração.
Estou falando que o tempo, para Bergson, é o que costumo chamar de tempo subjetivo. Isso significa que Bergson não está falando do tempo ele mesmo?
Esta pergunta é capciosa.
Bergson está falando do que eu venho chamando de tempo subjetivo. Mas eu venho falando de tempo subjetivo em contraste ao tempo objetivo, o qual seria, se existisse, ou é, se existe, o tempo cósmico (o tempo da física).
Só que Bergson não faz essa distinção.
Bergson, como bom metafísico descritivo, fala de tempo a partir de como lidamos com o tempo. Assim, ele fala do que eu chamo de tempo subjetivo. Mas ele está fazendo metafísica descritiva, o que significa que ele está descrevendo a realidade do tempo a partir da compreensão comum do tempo.
Assim, Bergson está falando do que eu chamo de tempo subjetivo; mas Bergson está me corrigindo, poi ele está dizendo que a compreensão do tempo subjetivo revela a natureza do tempo objetivo, do tempo real.
Respeito muito Bergson por isso.
A duração, para Bergson, é algo da cabeça, é algo da realidade. Lidemos com isso. Acho que voltarei a este assunto ao falar da noção de consciência para Bergson.
A duração é um fluxo constante. É o fluxo da consciência. É como um rio fluindo das montanhas para o mar. Só que não é um rio, é uma experiência de um eu como você ou eu. Nessa experiência, flashbacks do passado engordam a percepção – e a própria experiência se estende no tempo, o que revela que ela é sustentada pela memória.
Este fluxo não se interrompe. E, aí vem uma coisa bem do Bergson: o passado, o presente, e o futuro estão costurados um no outro neste fluxo. Quiçá porque podemos perceber o presente, lembrar do passado, e antecipar o futuro. O passado não está acontecendo no presente, mas não foi apagado. Em vez disso, o passado se acumula ao presente – tal como na visão sobre a realidade do tempo que é chamada de teoria do bloco crescente. Já falamos sobre isso.
Do Presente ao Passado
Hoje os convido a ler a versão preliminar de um artigo original de metafísica da memória que escrevi, submeti, e foi aceito pela revista Dissertatio.
De acordo com a teoria do bloco crescente:
O presente é o surgimento de nova realidade, que logo se torna passado.
O passado é real e continua existindo, acumulando-se com o passar do tempo.
O futuro ainda não existe, é um nada.
Assim, o universo seria como um bloco quadridimensional que cresce temporalmente a cada momento presente, incorporando o novo passado e mantendo todos os passados anteriores, enquanto o futuro permanece em aberto. De modo que Bergson poderia aceitar um certo tipo de teoria 4D, pois parece haver alguma relação entre a proposta de Bergson e a teoria do bloco crescente.
Pense numa bola de neve.
Nas nossas mentes, nossa experiência se acumula, como uma bola de neve, e os floquinhos do passado ajudam a gerar a gigantesca bola presente.
Cada camada de neve representa uma camada de experiência. E as camadas vão se acumulando.
O resultado?
A experiência de duração.
Assim, a realidade psicológica do eu, o fluxo de consciência, é algo que não se resume ao presente, pois o passado influencia na construção do presente.
Psicologicamente, o futuro é algo aberto. Bergson, como bom metafísico descritivo, aceita esta banalidade. Ele a usa para explicar a natureza do tempo.
No tempo subjetivo, que é o único tempo que interessa a Bergson, o futuro não é fixo, não está pré-determinado. O futuro não está solidamente assentado. Abre-se, assim, a possibilidade da criatividade genuína a partir da liberdade e da imprevisibilidade.
Não estamos falando só de arte. Estamos falando das nossas ações em geral.
Nossas ações não são as consequências inevitáveis do passado + presente. Se você curte a liberdade romântica, esta visão te empodera; se você curte a culpa cristã/existencialista, esta visão te coloca toneladas sobre os ombros. Seja como for, o futuro é aberto, e o presente ele mesmo é uma ficção, pois não é experienciado. O que vivenciamos é uma mancha de tempo feita de pedados de passado, presente, e futuro.
O que vem a seguir. Aqui, apresentei a noção de duração segundo Bergson. Nas próximas semanas, apresentarei duas outras noções da filosofia de Bergson: consciência e riso.