Introdução
A relação mente-corpo não é chá com bolinhos.
A mente depende do corpo, como bem vem a saber quem fala o que não deve quando bebe. Mas não só isso. Alguns de nós pensam melhor cedo, outros tarde, e a privação de água, alimentos, sono ou abrigo afeta o jeito de pensarmos.
E assim por diante.
(Parêntese filosófico. Uma coisa é dizer que a mente depende do corpo, como todo pinguço vem a saber. Outra coisa é dizer que a mente é o corpo. Que a mente do bêbado depende do estado etílico do cérebro do bêbado é fácil de se ver. Mas a equação “mente = corpo” é invisível, na melhor das hipóteses, e um erro de combinação de peças de quebra-cabeças diferentes – um “erro categorial” – numa hipótese um pouco pior. Fim deste parêntese filosófico.)
O fato da mente depender do corpo permite que aprendamos algo sobre a mente a partir do estudo do corpo (principalmente do cérebro). Por exemplo, temos a capacidade de lembrar vividamente de experiências passadas – memória episódica. Esta capacidade é psicológica: isto é, mental – isto é, dependente do corpo. São várias as questões que se pode fazer sobre este poder. Por exemplo:
Como a experiência do tempo no lembrar episódico se relaciona com aquilo que se dá no cérebro?
Esta é uma questão empírica, pois é uma questão que exige investigação de coisas físicas relacionadas ao cérebro.
Não tenho como investigar hipóteses empíricas. Meu laboratório é uma poltrona na qual investigo com imaginação + lógica aquilo que se pode descobrir pela mera razão. Mas hipóteses empíricas têm como animar minha imaginação regrada pela lógica. E, justamente, um estudo empírico recente trata de como, em casos de lembranças episódicas, a experiência psicológica do tempo se correlaciona a certos estados físicos do cérebro.
O estudo que tenho em mente é o seguinte:
Evensoen, Hallvard Røe, Lars M. Rimol, Henning Stople Rise, Tor Ivar Hansen, Hamed Nili, Anderson M. Winkler, and Asta Håberg. 2024. “Pattern Integration and Differentiation: Dual Process Model of Episodic Memory.” Imaging Neuroscience, December. https://doi.org/10.1162/imag_a_00433.
Este estudo me fez pensar sobre algumas coisas relacionadas ao tempo na memória. Antecipando bastante, a conclusão filosófica que eu gostaria de propor é a seguinte:
Dado que o tempo subjetivo da memória episódica distorce a duração, mas não distorce a ordem dos eventos, podemos concluir que a memória episódica é uma boa guia para os aspectos objetivos do tempo, ainda que não represente exatamente como o tempo é.
Note que eu não sou um expert em neurociências.
Ao contrário, não tenho quase nada a dizer sobre o artigo que inspira este meu ensaio.
Leve isso em conta, leitor.
Ainda assim, o artigo de Evensoen e colaboradores é suficientemente claro e informativo para me inspirar a escrever sobre temas com os quais venho trabalhando.
Me interessa a memória.
Me interessa a questão sobre a realidade do passado.
Me interessa se e como a memória se vincula ao passado.
Considerando meus interesses, o artigo de Evensoen e colaboradores me permite pensar sobre:
Como o passado é representado na memória;
Como a maneira de representar o passado pode refletir características objetivas do tempo – ainda que o tempo na memória se aparte, em vários aspectos, como veremos, do tempo no mundo.
O tempo subjetivo
Meu ponto de partida é a distinção entre tempo objetivo e tempo subjetivo.
É preciso distinguir entre o tempo tal como este se dá ao espírito e o tempo tal como este existe ou se manifesta no mundo – pois há diferenças.
O tempo objetivo, ou tempo real, é o tempo mensurado através de tecnologias tais como os calendários e os relógios.
O tempo subjetivo, ou tempo mental, por sua vez, é o tempo tal como este se dá à mente.
O tempo real e o tempo mental têm duas características em comum: a ordem e o progresso. Mas há características divergentes. Por exemplo, a escala e o deslocamento.
Mas comecemos da bandeira do Brasil.
Ordem e progresso
O tempo real e o tempo mental são semelhantes em duas características: a ordem e o progresso. Considere a seguinte sequência de eventos:
O avô nasceu, o filho nasceu, o neto nasceu.
Não importa se estamos falando do tempo lá fora ou do tempo aqui dentro, o nascimento do avô é sempre anterior ao nascimento do pai, e o nascimento do pai é sempre anterior ao nascimento do filho. Isso indica que o tempo é ordenado, isto é, que os eventos estão organizados por relações de anterioridade e posterioridade, e que tais relações não mudam. Uma vez tendo nascido antes do neto, o avô não passa a ter nascido depois do neto.
Isso com respeito à realidade. Na mente, no entanto, as coisas podem ser diferentes.
Por exemplo, às vezes, “lembramos” das coisas de maneira desorganizada.
Para que nossos relatos sobre a realidade sejam úteis para os outros, precisamos nos esforçar para relatar as coisas tal como elas aconteceram. No que diz respeito à ordem dos eventos, o tempo da memória deve espelhar o tempo do mundo.
Consideremos o seguinte exemplo:
Zé lembra do que aconteceu ontem à noite. Primeiro houve uma discussão. Depois houve uma briga. Por fim, a polícia chegou.
Note que, neste exemplo, o episódio lembrado é constituído por três eventos: a discussão, a briga, e a chegada da polícia. Para que a lembrança seja acurada, é preciso que os eventos estejam representados na ordem temporal correta. Pois, se Zé achasse que primeiro houve chegou a polícia, depois houve uma briga, sua representação dos fatos seria inacurada. Isto é, a lembrança é acurada com respeito à ordem dos eventos se espelha a ordenação real dos eventos.
Objeção:
No tempo real, um acontecimento que dura um minuto dura – dã – um minuto. Mas, na memória, a lembrança deste mesmo acontecimento pode durar uma fração de segundo. Isso não indica que a memória se afasta da realidade?
A resposta é que sim, isso indica que a memória se afasta da realidade. Ainda assim, a objeção diz respeito à escala do tempo, não à ordem do tempo.
Ainda que a sequência discussão - briga - polícia tenha durado (digamos) 35 minutos, e que a lembrança dessa sequência tenha durado (digamos) um vigésimo de segundo, a lembrança é acurada quanto à ordenação temporal se a sequência de eventos apresentados é a mesma: primeiro a discussão, segundo a briga, terceiro a chegada da polícia.
Outra objeção:
No mundo real, cada evento do episódio discussão - briga - polícia se deu no presente. Na memória, contudo, esses elementos se apresentam como passados. Isso não indica que a memória manipula o tempo?
Sim, indica. No entanto, a mesma ordenação A - B - C pode se apresentar seja como passado, seja como presente, seja como futuro. Seria um erro desordenar os eventos, colocando a chegada da polícia antes da discussão, por exemplo; mas não é um erro representar o que era presente como sendo agora passado. Isto é, ao contrário, um grande acerto.
Uma segunda característica objetiva do tempo é o progresso. Voltemos ao exemplo acima. Primeiro, no tempo, houve a discussão. Depois, no tempo, a briga. Por fim, no tempo, a chegada da polícia. Isso é típico de uma ordenação temporal, a qual exige que um momento seja anterior ou posterior a outro.
A ordenação temporal se distingue de ordenações atemporais. Por exemplo, na ordem dos números, o 1 vem antes do 2, o 2 antes do 3 etc. No entanto, esta ordenação não é temporal. Todos os números são dados seja imediatamente, seja atemporalmente, seja… sei lá. Mas, na ordem temporal, nem todos os momentos são dados de uma vez.
Na ordem temporal, a lembrança sempre vem depois do lembrado. Ainda que se pudesse dizer que “É um tipo pobre de memória que opera apenas para trás” (Lewis Carroll, Through the Looking Glass, capítulo 5, 1872), é assim que as coisas são.
Compressão e expansão do tempo
O tempo que experienciamos é diferente do tempo real.
Não é difícil ver isso. O tempo real anda no seu ritmo, no seu tempo. O tempo mental, em contraste, é caprichoso.
Se você gosta do seu emprego, o tempo flui.
Se você odeia o seu emprego, o tempo se arrasta.
Se você gosta de videogames imersivos, as horas fluem como se fossem frações de segundos. Mas, se você está esperando um ônibus numa rodoviária desinteressante, o tempo congela.
Etc.
Na sua mente, o tempo se compacta ou se espande, flui ou se arrasta; mas, não importando seu interesse ou desinteresse, sem ligar para ti, o tempo cósmico segue seu ciclo sem se abalar com as suas atividades. Calendários e relógios são os mesmos para gamers e para pessoas que precisam escutar longas e detalhadas histórias aborrecidas sobre acontecimentos desinteressantes.
O tempo mental pode ser comprimido ou expandido; o tempo real, não. Isso mostra que o tempo real se diferencia da experiência do tempo, pois uma um ano ou um dia podem parecer longos ou curtos para diferentes pessoas, embora tenham a mesma duração.
Viagem no tempo mental
Além do encurtar e do espichar, outra coisa que você pode fazer no tempo mental é “viajar” para o futuro ou o passado.
Você não pode fazer o mesmo no tempo real.
(Deixo para ti pensar e decidir se esse “não pode” diz respeito à metafísica ou à tecnologia.)
No tempo real, você não tem opção a não ser estar no presente.
A sua mente, é claro, pode vagar pelo futuro ou pelo passado no tempo mental; mas seu corpo segue ancorado no presente do mundo real, rolando para o futuro do mundo real, de qualquer forma.
O que é um traço de memória?
Até agora só falei da parte psicológica. É hora de falar do corpo.
Mas, antes, falemos da cognição do passado, a qual inevitavelmente se dá no presente.
Quando você está lembrando de algo, aquilo que você lembra não existe mais, pois deixou de acontecer.
Por exemplo, quando você, adulto, está lembrando da sua festa de aniversário de oito anos, isso que você lembra já passou faz bastante tempo.
Mas, então, quando você lembra agora de uma coisa dessas, o que é que faz, agora, com que você lembre? Qual a base, na realidade presente, para a sua lembrança?
A base da sua lembrança é o não-sei-o-quê que se dá no seu corpo (no seu cérebro) e funciona como se fosse a fita VHS (às vezes mofada e mastigada) do que se deu antes.
O apelido deste vá-saber-o-quê é traço de memória, ou engrama.
O traço de memória é uma marca do que aconteceu – tal como uma gravação numa fita VHS é uma marca do que aconteceu.
É preciso que haja traço de memória do seu aniversário de oito anos para que você possa lembrar do seu aniversário de oito anos – assim como, se você fosse uma espécie de videocassete, seria preciso que você tivesse a fita do seu aniversário de oito anos para reproduzir as marcas do que aconteceu.
No entanto, não basta ter na estante a fita VHS do seu aniversário de oito anos para lembrar disso. É preciso tocar a fita no videocassete.
(Se você está me entendendo, o aparelho de videocassete é metáfora da sua mente/cérebro; e uso a ideia de fita VHS com o sentido de traço de memória.)
De modo que o traço de memória da experiência de um evento E é necessário, mas não é suficiente, para a lembrança de E.
Ou seja, alguma coisa mais, além do traço de memória, é requerida para que a lembrança ocorra.
O mesmo com videocassetes. Algo ou alguém tem que levar a fita até o aparelho. Este algo pode ser alguma coisa que te interesse agora por vá saber quais motivos. Você pode ser levado a tocar a fita do seu aniversário de oito anos porque sentiu certo gosto que tem tudo a ver com um doce que sua tia fez daquela vez. Ou algo assim. Ou outra coisa.
Usando termos propostos por Richard Semon, há dois processos relacionados aos traços de memória: a engrafia e a ecforia.
Primeiro, um acontecimento deixa uma marca no teu corpo (cérebro). O processo de te marcar é chamado de engrafia.
Depois, com sorte ou oportunidade, algo te faz voltar a essa marca, e você acaba “lendo” a marca; eis o processo de evocação do que te marcou. Esse processo é chamado de ecforia.
Mas, o que tem os traços de memória a ver com o tempo subjetivo?
O tempo subjetivo e as coisas que se dão no cérebro
Como o tempo mental se relaciona aos traços da memória?
O estudo que inspira esta postagem trata exatamente desta questão. Eis como eu resumo a proposta:
A memória bem-sucedida de episódios está associada a distorções do tempo definidas pela compressão do tempo no interior dos episódios e a expansão do tempo entre episódios vizinhos.
Ok, ok, esta é uma conclusão obscura. Mas dá para explicar, pedacinho por pedacinho.
A conclusão de Evensoen e colaboradores é sobre memória episódica, que é o tipo de memória que você tem quando você vê, no “cineminha” da sua mente, um “filminho” de algo que você vivenciou.
Fantasiar com você andando de Ferrari na beira da praia não é lembrança episódica; reviver a sensação de frio e de buscar equilíbrio pedalando sua bicicleta na casa da vó é memória episódica.
O que é um episódio?
Quando falamos de memória episódica, um episódio é um sanduíche cujos pães são eventos e cujo recheio é uma fração de tempo.
Um evento isolado não constitui uma memória episódica, pois um evento só é estático.
Dois eventos em sequência temporal, em contraste, geram um dinamismo que se dá pela diferença temporal entre as fatias (assim como, comparando duas fatias de pão, uma é mais larga ou furada do que a outra etc.).
Por exemplo, suponha-se lembrando da sua formatura – mais exatamente, do episódio de você subindo ao palco para receber o canudo.
Primeiro você está sentado na sua cadeira (eis um evento físico), antecipando que seu nome será chamado (eis um evento psicológico simultâneo); depois você escuta seu nome (eis outro evento psicológico); você se levanta, arruma sua roupa, caminha em direção à entrada do palco (mais um evento físico); você recebe os cumprimentos das autoridades presentes, todos sorriem, você recebe o canudo (evento físico); você olha para trás (evento psicofísico), tenta achar faces conhecidas na plateia (evento psicofísico); você acena por um momento (evento psicofísico); você caminha em direção à saída do palco (evento psicofísico).
Tudo isso, envolvendo seu interior psicológico, seu corpo, e os corpos ao redor, forma o episódio que você lembra – o episódio da sua formatura.
De modo que, em suma, um episódio é um complexo feito de eventos que se avizinham no tempo segundo sua experiência.
Algo interessante, segundo o estudo de Evensoen e colaboradores, é que, dentro dos episódios, pode haver compressão do tempo ou expansão do tempo.
Isto é, o tempo do episódio pode te aparecer comprimido, esmagado, ou expandido, dilatado.
Isso não deveria surpreender. Numa lembrança, o que não se dá é reprodução do tempo real em escala 1:1 no tempo mental.
Enquanto todo o evento de receber o diploma levou, digamos, dois minutos, a lembrança do evento leva apenas uma fração de segundo.
O que é ótimo.
Não fosse assim, lembrar seria tão chato quanto assistir gravações de câmeras de segurança (ou filmes em tempo real, sem cortes, se é que vocês me entendem).
Ou seja, sistematicamente, a memória episódica nos apresenta filmes em tempo subjetivo comprimido de eventos que se deram em tempo real.
Se quiserem, isso indica que a memória sistematicamente distorce o tempo real.
Eu prefiro pensar que a memória sistematicamente aprimora o tempo real. Seríamos presas fáceis se tivéssemos que levar minutos para lembrar de eventos que duraram minutos.
A aprimoração tem um elemento interessante: o tempo real é comprimido no tempo mental, mas não parece comprimido. Revisitar uma memória é diferente de rever um vídeo. Rever um vídeo de um evento que dura um minuto leva um minuto; rever este mesmo vídeo em dupla velocidade leva 30 segundos, mas tudo fica ridiculamente acelerado. Revisitar uma memória de um evento que durou um minuto leva uma fração de segundo, mas nada parece acelerado. É uma representação realística do tempo real num tempo irreal.
Pois bem, Evensoen e colaboradores descobriram que, quando as pessoas comprimem o tempo entre os eventos ou acontecimentos que constituem um episódio, a lembrança da ordem dos eventos que constituem o episódio é mais acurada.
Por que isso se dá?
Difícil saber a causa, mas Evensoen e colaboradores observaram uma correlação. Nos casos em que o tempo aparece mais comprimido, e que são em geral mais acurados, os traços de memória dos objetos que fazem parte dos eventos que constituem os episódios estão mais integrados uns aos outros.
Isto é, quando a lembrança da discussão está bem costurada à lembrança da briga, e a lembrança da briga está bem trançada à lembrança da chegada da polícia, é mais comum que a lembrança da ordem dos eventos seja acurada.
Como Evensoen e equipe observaram isso?
Por um lado, entrevistando os sujeitos de pesquisa para saber sobre como foi a experiência de lembrar; por outro lado, usando máquinas de neuroimagem para observar o que se deu no cérebro dos sujeitos de pesquisa enquanto eles lembravam. A entrevista revela algo sobre a experiência; a máquina revela algo sobre o cérebro e os traços de memória, os quais são “fotografáveis”.
Ou seja, dentro de um episódio, a costura forte entre os elementos lembrados se correlacionada à experiência de tempo comprimido, e também à acurácia na lembrança da ordem dos eventos.
Agora vamos falar da relação entre episódios. Por exemplo, a relação entre o episódio de ir ao palco receber o diploma e o episódio de abraçar os colegas e a família após a cerimônia. São dois episódios diferentes, ainda que um ocorra após o outro.
Evensoen e colaboradores descobriram que quando as pessoas expandem o tempo entre episódios vizinhos, isso se correlaciona à melhor lembrança da ordem dos episódios. Isto é, expandir o intervalo entre episódios ajuda a lembrar da ordem dos episódios.
De novo, a experiência do tempo (a expansão do tempo) foi observada (indiretamente, é claro) através de entrevistas. Esta experiência do tempo como algo expandido se correlaciona, de acordo com a pesquisa de Evensoen e colaboradores, com traços de memória mais separados para cada um dos eventos.
Ou seja:
Quando se trata de eventos que constituem um episódio, se os traços de memória para cada evento estão bem integrados aos traços de memória dos eventos adjacentes no tempo, o resultado é uma experiência de tempo comprimido, e também há maior chance de se lembrar corretamente a ordem dos eventos.
Quando se trata da relação entre episódios consecutivos, se os traços de memória de cada episódio estão suficientemente separados uns dos outros, costuma haver experiência do tempo como algo dilatado, e há mais chance de se lembrar corretamente a ordenação dos episódios.
Assim sendo, a integração de padrões de traços de memória, em conjunto com a compressão temporal, fortalece as relações dentro de um episódio, e aumenta as chances de se lembrar corretamente a ordem dos eventos. E a separação de padrões de traços de memória, em conjunto com a expansão temporal, auxilia na separação dos episódios, e aumenta as chances de se lembrar corretamente da ordem temporal dos episódios.
De modo que os dois processos, integração/compressão e separação/dilatação, são importantes para a memória humana. E, além disso, nota-se que a distorção do tempo real, via compressão ou dilatação, se correlaciona à boa lembrança de um aspecto do tempo real: a ordenação dos eventos.
E daí?
Tudo isso é fascinante. Mas, o que isso diz sobre a natureza da memória?
A meu ver, isso diz que a memória, ao distorcer o tempo real, apresentando-o seja mais integrado dentro de um episódio, seja mais espalhado entre episódios, nos mantém aptos para representar bem a ordem seja dos eventos que fazem parte de um episódio, seja dos episódios. E, considerando que essa distorção é benéfica, é um aprimoramento (pois seria horroroso levar minutos para lembrar de eventos que duraram minutos), isso indica que o não-sei-o-quê corporal que nos permite lembrar está aí para nos ajudar a representar corretamente a ordem temporal, a qual é uma característica objetiva do tempo, e o faz isso nos livrando do tédio de levar um tempão lembrando de cada coisa.
E daí, portanto, que a natureza nos ajuda a representar corretamente as características objetivas do tempo, mas não nos entedia ao fazer isso. Sou duplamente grato por isso.
Tudo isso é realmente fascinante. Como sabes, sou leitor de Ricoeur, que em MHE, toma partido por Aristóteles, para quem a memória "é do passado", contra quem diz que a memória é "uma província da imaginação". Mas também sou leitor de outros textos que vão mais para esse lado do que para aquele. Me - e te - pergunto sobre se há razões - lógicas ou bioquímicas e neurofisiológicas - para sustentar que a memória não é, mesmo, uma província da imaginação. Até porque, salvo melhor engano, acho que já me disseram que tanto a imaginação do futuro quanto a lembrança do passado ocorrem nas mesmas zonas cerebrais - mas, reitero, posso estar mal enganado. Abraço e bom domingo!