Os Ensaios de Berkeleyanismo Radical de William James
Por esses dias, reli os Ensaios de Empirismo Radical, de William James. Nesta segunda leitura, consegui ver mais da paisagem que se esconde por detrás da bruma steampunk. Na primeira vez que li, me pareceu que eu estava lidando com uma espécie de pré-história da filosofia da mente. O problema central – a relação corpo-mente – se fazia presente, mas boa parte do texto me parecia um monte de internal jokes do mundo cultural do seriado The Knick, e eu simplesmente não conseguia entrar na conversa.
Na segunda leitura, no entanto, me pareceu claro que se trata, como está muito bem dito no título, de ensaios de empirismo radical – isto é, de ensaios que usam o empirismo do bom bispo Berkeley como ponto de partida. E, assim sendo, esses Ensaios têm algo berkeleyano a dizer sobre dois assuntos: a experiência e a verdade.
Sobre a experiência, o ponto de partida de James é a concepção de eu (ego, self) que emerge a partir de Kant.
Mas comecemos bem antes.
A linguagem e o senso comum, como bem documenta Henry L. Roediger III no artigo “Memory Metaphors in Cognitive Psychology”, metaforizam a mente tal como se essa fosse um espaço, um container, e os pensamentos como se fossem objetos localizados neste espaço mental. Mas trata-se de mera metáfora. Como James bem aponta, a linguagem ordinária e o senso comum não reduzem a mente ao corpo. Trata-se, antes, de um tipo de coisa diferente. Como disse Descartes, ecoando filosoficamente o senso comum, a mente é coisa pensante, res cogitans, e o corpo é coisa extensa, res extensa; são coisas diferentes, e até opostas.
A situação muda, no entanto, quando Kant nos dá razões interessantes para substituir a coisa pensante pelo eu transcendental, o qual não é uma coisa, sendo antes um não-sei-o-quê (um sujeito de experiências que também é o agente das suas próprias ações?) que experiencia, ora vejam, tanto objetos exteriores (as coisas extensas) quanto seus próprios pensamentos (os quais são coisas mentais), de modo que Kant substitui a oposição entre corpo e matéria pela oposição entre o eu que representa algo e aquilo que é representado por esse eu, sendo que isso que é representado pode ser tanto corporal quanto mental, de modo que o corpóreo e o mental agora ficam lado a lado, quando antes se opunham. Ambos passam a ser conteúdos mentais experienciados por um eu que não é uma coisa, ainda que seja um experienciador.
Mas, o que é esse experienciador? James propõe que se trata de uma operação, de uma função.
Por que isso?
Pelo seguinte:
James é um monista. Só há um tipo de coisa, e este tipo de coisa é uma relação entre o experienciador e aquilo que é experienciado. Enfim, o que existe é a experiência.
E também:
James é um idealista. O experienciado é o percebido, e o que existe é o percebido. Como diria Berkeley, ser é ser percebido, esse est percipi.
Consequências?
A proposta se mostra interessante quando começamos a pensar no que segue da metafísica de James. Por exemplo, uma memória se torna algo que representa seja algo mental, seja algo corpóreo. Se o experienciador quer focar nos objetos lembrados, a memória é de algo corpóreo; se o experienciador quer focar no ato de lembrar, a memória é de um estado mental.
O contexto?
Os Ensaios usam bastante do que James pensou sobre o fluxo da consciência. Conscientemente, passamos de uma experiência à experiência seguinte, sendo que ambas experiências nos pertencem. E cada eu tem as suas próprias experiências, as quais não se misturam com as experiências de outros eus. De modo que experienciamos a continuidade das nossas próprias experiências e a descontinuidade entre as nossas próprias experiências e as experiências dos outros. A mente, nessa visão das coisas, torna-se um conjunto de experiências simultâneas que se encaixam em certas transições de experiências sucessivas.
A consciência, na visão de James, é como uma dobra da experiência, um dobro de experiência. Uma experiência é consciente na medida em que estabelece relações com certas outras experiências, mas não com certas outras outras experiências. É assim que se chega à identidade pessoal – cada experiência se reportando a experiências anteriores como sendo “minhas”.
Com respeito à verdade, James a substitui por algo que poderíamos chamar de asseribilidade justificada. Assim sendo, há espaço para a subjetividade, pois posso ter ou carecer de razões para afirmar ou negar algo. E a razão para se afirmar ou negar algo é isso que se afirma ou nega seja satisfatório, sendo que “a satisfação é um termo multidimensional” (p. 220).
O empirismo radical de James me lembrou do fenomenismo humeano e o dos céticos antigos: só há fenômenos; de modo que a bifurcação entre interno e externo é fragilizada, assim como qualquer noção substancial de eu. É quase uma filosofia do acontecimento! James vai nessa esteira?
Lembrei de Ricardo Goldenberg refletindo sobre o verbo "satisfazer" em razão dos usos e abusos do conceito de "gozo", tradução (talvez inadequada, segundo ele) de "jouissance" em Lacan. Curiosamente, depois da fala de Goldenberg, Dunker assinala um aroma meio idealista de tipo berkeleyano na fala do seu amigo.. Essas considerações sobre o "satisfazer" estão neste ponto deste vídeo: https://youtu.be/-wuLCS1IKRs?t=2252