Hoje os convido a ler a versão preliminar de um artigo original de metafísica da memória que escrevi, submeti, e foi aceito pela revista Dissertatio.
Neste artigo, tento explicar, do ponto de vista da metafísica, do que estamos falando quando falamos que alguém lembra de algo. Isto é, busco explicitar quais seriam as bases, na realidade, para afirmações do tipo “Ele lembra da festa”, “Eu lembro de estar vendo o filme”. Há algo que está ao menos implícito nessas falas. O trabalho do metafísico, no caso, é explicitar o que seria isso. É como se alguém perguntasse se tem peixe no lago turvo e você respondesse colocando a mão na água, pegando algo, e exibindo o que você pegou, seja isso um peixe, seja isso um graveto molhado.
Para responder a pergunta sobre do que falamos quando falamos em lembrar, faço a distinção entre dois tipos de casos:
Os casos descritivos, nos quais simplesmente descrevemos o que a pessoa acha que está passando na sua cabeça, ainda que esta pessoa não esteja lembrando de nada;
Os casos normativos, nos quais a pessoa está lembrando mesmo.
No artigo, apresento um caso de lembrança no sentido descritivo de um paciente psiquiátrio. Ele “lembra” de ter participado de uma conferência importante no dia anterior, mas não sai do hospital faz três meses. O cara diz: “Lembro que, após minha conferência, tomei um café com o vencedor do Prêmio Nobel”. Nada disso aconteceu. Ontem, o cara não saiu em nenhum momento da ala psiquiátrica do hospital. Não houve conferência, não houve café com algum premiado com o Nobel. Ainda assim, faz sentido descrever o cara como lembrando – mas no sentido descritivo de “lembrar”. Descrevemos o cara assim exatamente porque isso marca no que ele tem dificuldade, e no que precisamos ajudá-lo. Mas a coisa não se resume à patologia, pois é comum que achemos, erroneamente, que algo nos aconteceu, e que lembramos disso.
Os casos de lembrança no sentido normativo são aqueles nos quais realmente aconteceu de certo jeito aquilo que é representado desse mesmo jeito. Esses casos são mui valiosos para nossas vidas em sociedade, pois transmitimos uns aos outros o que vimos e lembramos – nos tornando, assim, olhos emprestados da sociedade que nos cerca, da qual dependemos, e de que de nós depende, pois sociedade implica cooperação. A partilha do lembrado é uma das formas mais básicas de cooperação. Essa partilha só faz sentido se cobramos, uns dos outros, fidelidade aos fatos. Bem, é isso que significa o lembrar no sentido normativo.
Meu ponto é que a “lembrança” do primeiro tipo, a lembrança descritiva, pode se apoiar na fantasia, mas a lembrança do segundo tipo, normativa, tem que se apoiar na realidade.
Depois disso, no artigo, parto para uma discussão de como deve ser a realidade do passado para que a memória tenha uma boa base. Ou seja, parto para a metafísica barra pesada. O que investigo, no final das contas, é se e como o passado é real, pode ser real.
Há diversas maneiras de responder a pergunta sobre a realidade do passado. Por exemplo:
Presentismo: Só o presente é real.
Eternismo: Todos os tempos são igualmente reais.
Teoria do Bloco Crescente: O presente é o surgimento de mais e nova realidade, a qual quase imediatamente se torna passado e se soma a todos os outros passados, os quais continuam existindo – em contraste com o futuro, que nada é.
Defendo como solução para a questão da realidade do passado, no artigo, a teoria do bloco crescente, segundo a qual o passado é real, o futuro é nada, e o presente é a movente franja de surgimento de nova realidade. Assim sendo, quem lembra no sentido normativo deve vincular algo que se passa no cineminha interno à sua mente ao que se deu no passado e que ainda é real, embora não seja mais presente.
Por fim, uso a teoria da memória de Aristóteles para explicar como cada um de nós faz para separar as próprias lembranças das meras fantasias (quando não temos problemas psiquiátricos ou outros que nos impeçam, é claro). Nessa explicação, o que se dá é, simplesmente, que tomamos certos filmes mentais como se reportando ao passado.
(Como isso de tomar um estado mental como sendo assim ou assado se dá? Como sugeri n’outro texto para O Espaço Negativo, aprendemos a lembrar. Isto é, aprendemos a avaliar certas vivências privadas como sendo lembranças em vez de fantasias.)
De modo que, quando falamos que alguém lembra de algo, estamos falando seja do que se passa na cabeça de alguém, seja de como isso que se passa na cabeça de alguém se vincula à realidade – mas sempre considerando como avaliamos os filmes que se passam nos cinemas mentais privados.
Enfim, é um texto de filosofia, e você quiçá pode se interessar em lê-lo. Na pior das hipóteses, o texto te fará dormir, livrando-te do flagelo da insônia.
Para ler o texto, siga este link do PhilArchive.