Esta é uma pesquisa que apresentei no Santa Maria-Grenoble Memory Workshop 3, aqui em Santa Maria – um evento que contou com fomento do Programa CAPES-PrInt e do Programa CAPES-COFECUB. Trata-se de uma investigação sobre a filosofia da memória e, no caso desta pesquisa, “memória” significa “memória episódica”, a qual é a experiência, com rica e vívida imageria mental, de episódios do passado pessoal.
Minha afirmação central é a seguinte:
Aprendemos a lembrar.
Não se trata, de maneira nenhuma, de uma conclusão original. Há um rico corpo de pesquisa empírica sobre o assunto, com destaque para as propostas do psicólogo/filósofo Johannes Mahr sobre como a imageria mental torna-se uma lembrança.
A ideia é que nós aprendemos a lembrar, mas não aprendemos a ver, no “cinema” instalado no interior das nossas mentes, vívidas e dinâmicas imagens mentais, pois isso é algo que simplesmente somos capazes de fazer, independemente de aprendizado.
Somos capazes de visualizar, nas nossas mentes, cenas de locais que já visitamos, ou queremos visitar (navegação); cenas parcial ou completamente fantasiosas, incluindo sonhos (imaginação); cenas que se passariam nas mentes dos outros (mindreading, simulação, teoria da mente); e cenas que pertencem a nossos respectivos passados pessoais (lembrança episódica).
Mas, defendo, as cenas mentais vêm sem rótulos. É através do aprendizado cultural que aprendemos a rotular as cenas mentais como memórias, desejos futuros, sonhos, ou fantasias sobre passados alternativos.
A ideia é que, no que diz respeito aos “filmes” que se passam nas nossas cabeças, a natureza nos dá algo que se assemelha às sensações, enquanto a cultura nos dá algo que se assemelha aos conceitos. As imagens que vêm às nossas mentes são pictóricas, são VACOG (visuais, auditivas, cinestésicas, olfativas, ou gustativas). O que começamos a aprender, desde a infância, é a inferir, usando lógica aprendida dos outros, se certa cena mental é de um tipo ou de outro.
Como isso se dá?
O aprendizado é, primeiro, semântico. Os outros nos passam restrições relacionadas ao uso de certas palavras. A palavra “memória”, por exemplo, só deve ser usada para falar de cenas mentais que estejam ancoradas em experiências passadas. A palavra “imaginação”, em contraste, pode ser usada para se falar de coisas que nem mesmo podem acontecer. A palavra “sonho” tem outras regras. E assim por diante.
O aprendizado também é epistêmico. A criança aprende, por exemplo, que a cena mental ligada a uma experiência anterior tem valor de testemunho, enquanto a cena mental oriunda do sonho não tem o mesmo privilégio – ao menos enquanto informação sobre o mundo exterior, embora seja rica informação sobre a vida interior.
Por fim, o aprendizado é metacognitivo, pois a criança aprende a associar o que se dá quando uma cena está apropriadamente restrita pelas regras sociais do lembrar a um certo sentimento que ela tem quando vivencia estas cenas.
Ou seja, a criança aprende a usar critérios exteriores, os quais são lexicais e epistêmicos, para diferenciar seus sentimentos interiores. É assim que a criança aprende a lembrar, isto é, aprende a rotular, adequadamente, certo tipo de experiência como sendo lembrança em vez de imaginação.
Apenas esclarecendo a terminologia:
Um processo mental é cognitivo (em vez de metacognitivo) quando diz respeito ao monitoramento da realidade exterior. Por exemplo, você vê um pássaro, e se pergunta se é um quero-quero ou um sabiá. O processo é cognitivo por dizer respeito à percepção.
Um processo mental é metacognitivo (em vez de simplesmente cognitivo) quando diz respeito ao monitoramento da realidade interior, isto é, dos estados psicológicos internos. Por exemplo, você tenta lembrar do que almoçou, e uma cena te vem à mente. Dependendo do que você sente (estamos falando de sentimentos metacognitivos), você pode reconhecer esta cena como uma memória de algo que aconteceu, ou misto de fantasia e realidade, ou como mera fantasia.
O aprender a lembrar se dá através de conversas entre as crianças e seus cuidadores. A pequena Martina diz que viu um unicórnio no zoológico. A mãe, docemente, diz que isso não aconteceu. Nessa pequena conversa, a palavra “memória” não aparece nenhuma vez. Ainda assim, a mãe passa para Martina uma regra para como relatar experiências lembradas: só use verbos epistêmicos “de sucesso”, como ver, se de fato você teve sucesso no ver o que foi relatado.
A pequena Joana, em contraste, diz que ontem imaginou um unicórnio. Sua mãe ri e pede para ela descrever ou desenhar o bicho. Não há, nesse caso, tutoria requerida, pois o verbo “imaginar” foi usado apropriadamente.
Em suma, defendo que aprendemos a rotular nossos filmes mentais como memórias, fantasias, sonhos, imaginações etc.
Como veremos, há boas razões para aceitar essa ideia. Mas, antes, pensemos sobre o que faz com que a ideia pareça estranha. Uma razão, penso eu, diz respeito às metáforas da memória e da imaginação que aceitamos meio que automaticamente.
Simplificando bastante, é como se achássemos que nossas mentes incluem duas caixas: a Caixa da Memória e a Caixa da Imaginação. Se uma experiência começa na percepção, vai automaticamente para a Caixa da Memória; se começa no uso deliberado da criatividade, acaba na Caixa da Imaginação.
Se assim fosse, não precisaríamos aprender a lembrar, pois nossas mentes colocariam as experiências nas caixas certas automaticamente.
Mas, e se nossas mentes não vêm naturalmente equipadas com essas caixas? Não tenho como provar se esse é o caso, ou não, mas se as razões para aceitar a tese que aprendemos a lembrar são boas, temos que encaixotar essas metáforas.
O que defendo é que visualizamos filmes mentais nos cinemas internos às nossas mentes, mas esses filmes vêm sem rótulos. Por si só, as cenas mentais podem ser de dramas ou de documentários, de noticiários sérios ou fake news.
Para ilustrar a proposta, pense na sua mais antiga lembrança de infância.
Feito?
Pois bem, é o seguinte:
A maneira na qual você lembra deste episódio foi profundamente influenciada pelo modo como seus cuidadores te ensinaram a lembrar.
Diferentes cuidadores têm diferentes estilos de ensinar as crianças a pensar sobre o passado. Simplificando bastante, há cuidadores que são mais elaborativos, e cuidadores que são mais repetitivos. Um cuidador mais elaborativo enriquece os elementos interiores da conversa sobre a memória.
Por exemplo, digamos que a mãe pergunte “O que você acha que a Clarissa tava pensando?”. Esta pergunta, na superfície tão banal, requer que a criança:
Distingua o presente do passado
Distingua o passado real do passado imaginado
Distingua o passado percebido do passado inferido, pois só percebemos os corpos dos outros, não seus pensamentos e sentimentos, e temos que inferir estados mentais a partir de estados físicos.
Distingua o passado que ela mesma percebeu do passado que a Clarissa percebeu.
Distingua o que ela mesma pensou no passado do que a Clarissa teria pensado no passado, segundo as melhores pistas disponíveis (relatos, expressões faciais, comportamentos etc.).
De modo que, encurtando bastante a discussão, a mãe não está apenas ajudando a criança a lembrar; ela está, também, ensinando que memórias são experiências pessoais que podem ser diferentes para pessoas diferentes.
Esta tese que aprendemos a lembrar ganha contornos mais claros se levamos em conta que a metacognição tem origens culturais.
Ao monitorar nossos próprios estados mentais, usamos o que aprendemos com os outros para descrever e classificar o que estamos pensando.
São os rótulos fornecidos por outras pessoas que nos permitem estabelecer se nossos estados mentais são fantasias, representações da realidade pessoal passada, do que poderíamos ter vivenciado (mas não experienciamos), ou possibilidades futuras.
Aprendemos a discriminar nossos processos cognitivos internos. Com isso, por exemplo, começamos a classificar imaginações de bichos peçonhentos de maneira diferente das percepções e das lembranças de bichos peçonhentos.
Aprendemos, também, a interpretar esses processos. Imaginar um bicho peçonhento num lugar tem consequências diferentes de lembrar de um bicho peçonhento num lugar.
Aprendemos, por fim, a comunicar nossos estados mentais. Se vimos um bicho peçonhento, o que dizemos para nossas mães tem que ser diferente do que diríamos se apenas tivéssemos imaginado uma aranha ou uma cobra.
Mas, e se uma criança selvagem não aprende a usar rótulos metacognitivos?
Se o aprendizado cultural não se dá, e ela não aprende sozinha, a teoria prevê que essa criança não diferencia claramente entre fantasia e realidade, ao menos quando está lidando com as imagens que se dão na sua mente.
Quanto às consequências filosóficas da tese que aprendemos a lembrar, são muitas.
Primeiro, com respeito à metafísica, segue que a memória episódica não é uma espécie natural – ainda que a simulação episódica seja uma espécie cognitiva.
Terminologia:
Há várias maneiras de se definir “espécie natural”; mas, segundo a noção causal de espécie natural, uma espécie natural E é delimitada pelo conjunto C de entidades que tem certa característica cientificamente interessante I por causa de um mecanismo subjacente M.
Na proposta de Khalidi, espécies cognitivas são tipos reais de coisas que se diferenciam dos seus realizadores neurais. Assim, por exemplo, a memória seria uma espécie cognitiva que não se confundiria com as bases neurais da memória. A individuação das espécies cognitivas se daria pelas relações causais típicas da espécie cognitiva segundo as melhores ciências disponíveis. Assim, estabelecendo essas relações causais em termos informacionais, o perfil causal da memória seria tal que usaria a percepção (um tipo de informação) como input e geraria simulação mental (outro tipo de informação) como output.
O neurocientista Sen Cheng e o filósofo Markus Werning entendem que a memória episódica é uma espécie natural, pois tem propriedades únicas que se manifestam por causa dos mecanismos envolvidos na operação do hipocampo (uma região do cérebro notoriamente envolvida com a memória).
O problema desta proposta é que ela nada diz sobre se os mecanismos operam da maneira que operam em adultos capazes de lembrar por causa (ou não) do aprendizado cultural. E, se a operação típica desses mecanismos depender do aprendizado cultural, é complicado defender que estejamos falando de uma espécie natural – ainda que faça sentido defender que a memória é uma espécie cognitiva. Pois como poderia a memória ser uma espécie natural e estar sujeita a variações culturais que afetam a maneira como se ensina e se aprende a distinguir lembrança de imaginação?
Outra consequência filosófica diz respeito à epistemologia. Se o lembrar tem origem no aprendizado cultural, as normas culturais para os relatos de memória são relevantes.
Uma dessas normas é a condição de consciência anterior, a qual diz que você só pode lembrar do que experienciou. Por exemplo, você não pode lembrar da chegada de Napoleão em Grenoble em 2024, pois você não estava lá. (Os simulacionistas discordam, mas eles propõe uma teoria revisionista da memória, a qual nega a visão do senso comum).
Outra consequência epistêmica é que a noção de falsa memória é um oximoro, um círculo-quadrado.
Há também consequências filosóficas relacionadas à semântica. Se um filósofo quer analisar o que as pessoas em geral entendem por “memória” (o que seria um projeto de pesquisa típico da metafísica descritiva), ele precisa levar em conta as normas culturais que se aplicam ao correto uso de termos como “memória” e “lembrar”.
Por fim, há consequências filosóficas relacionadas à relação entre o lembrar e a psicologia popular (folk psychology). Pois, se aprendemos a lembrar, isso se dá porque os outros nos ensinam a classificar nossos estados mentais segundo a psicologia popular. Mas, sendo assim, a psicologia popular é uma profecia se se autorrealiza.
Em suma, há boas razões para crer que aprendemos a lembrar. Se esse é o caso, dificilmente a memória é uma espécie natural. E, se quisermos descrever o que é lembrar, precisamos levar em conta as normas sociais do lembrar, as quais, plausivelmente, podem variar de local a local, de tempo a tempo.
Olá César. Obrigado pelo texto gentil com o leitor. Há poucos dias conheci esta rede social e voltei a ter vontade de interagir dessa forma. A possibilidade de ler e poder trocar ideias sobre conteúdos como esse que tu nos oferece é um oásis. E eu não sabia que estava com tanta sede :)
Eu ignoro bastante filosofia da mente, em especial as discussões mais recentes (Kant, que eu conheço um pouco, conta como filosofia da mente, eu imagino). Então para me aproximar do teu texto, começo pela forma. Na primeira parte, tu explicas o sentido da tua afirmação central "Aprendemos a lembrar.".
Um parêntese: ajuda muito o contraste que fazes com a condição de não aprendermos a ter consciência das nossas "cenas mentais". Tu usas o verbo "ver", mas acho que é um uso metafórico ou analógico, não? Eu não vejo cenas mentais como vejo o passarinho na minha frente. Ou vejo? Fecho parêntese.
Após explicar a afirmação central, argumentas haver boas razões para sustentá-la. A forma geral da tua argumentação seria que i) a afirmação central tem implicações - se bem entendi 5 implicações; e ii) estas implicações são verdadeiras, deveríamos estar dispostos a adotá-las. Logo, a força argumentativa em favor da tua afirmação central residiria nesta compatibilidade, consistência, com crenças que deveríamos ter, com juízos que deveríamos tomar por verdadeiros. Entendi corretamente a forma geral?