Sete Técnicas Narrativas Latino-Americanas
Prepare-se para o inusitado (mesmo que você já tenha alguma experiência com técnicas de escrita)
Recentemente assisti um vídeo do canal Bookfox que explora sete técnicas narrativas distintivas da literatura latino-americana.
As técnicas apresentadas vão desde o paradoxo garciamarquiano do “mais fantástico = mais fundamentado” até o uso contra-intuitivo de símbolos em Clarice Lispector.
1. O Real Dá Credibilidade ao Paradoxal
Gabriel García Márquez, o arquiteto do realismo mágico, nos apresenta uma técnica que inverte nossa intuição: quanto mais fantástico o elemento, mais detalhada e mundana deve ser a ocasião da sua apresentação.
No livro Um Senhor Muito Velho com Umas Asas Enormes, Márquez constroi um universo sensorial denso (chuva, caranguejos, criança com febre, casa fedida, cor do mar, cheiro de mariscos podres) antes de revelar a presença do homem alado.
Como Márquez ele próprio disse:
“Um romancista pode fazer qualquer coisa que quiser, desde que faça as pessoas acreditarem nisso.”
2. Preparando o Leitor para a Catástrofe
Roberto Bolaño, em sua obra-prima 2666, desenvolve uma estratégia sofisticada para preparar o leitor para a devastadora quarta parte do romance, onde centenas de mulheres são assassinadas na fronteira México-Estados Unidos. Bolaño emprega duas técnicas complementares:
Primeira Técnica: Premonição Estrutural. Nas primeiras três seções, Bolaño semeia episódios de violência contra mulheres (esposas abusadas, histórias de agressão) criando uma atmosfera de inevitabilidade. Esta técnica constroi de um campo onde se pressente a catástrofe.
Segunda Técnica: Personagens de Contrapeso. Paralelamente, Bolaño constroi personagens femininas extremamente fortes e ativas nas primeiras seções. Esta estratégia impede que o romance se transforme numa orgia vitimista ao estabelecer a agência feminina como força narrativa central antes de apresentar sua vulnerabilidade extrema.
3. Narração Arquivística
Isabel Allende, n’A Casa dos Espíritos, desenvolve narrativas através de documentos, cartas, registros e fragmentos. A narradora reconstroi a história familiar através de vestígios textuais.
Epistemologia Histórica. Como conhecemos o passado? Através de fragmentos, interpretações, documentos parciais. A narração arquivística reproduz literariamente esta condição epistemológica, questionando a autoridade do narrador e abraçando a natureza mediada do conhecimento histórico.
Temporalidade Lacunar. A narração arquivística permite simultaneidades, contradições, e lacunas.
4. Construção Indireta de Personagens
Em Pedro Páramo, em vez de apresentar o protagonista diretamente, Juan Rulfo o constroi através de relatos de terceiros.
Quando o filho retorna à cidade do pai, encontra alguém na estrada que lhe revela três características definidoras: o lugar é um inferno, Pedro gerou centenas de filhos na vila, e ele é “bile viva”. Esta caracterização indireta cria expectativa e mitifica o personagem antes de sua aparição direta.
5. O Contraponto
Mario Vargas Llosa desenvolveu o conceito de efeito de contraponto (termo musical aplicado à narrativa para descrever como múltiplas vozes narrativas criam harmonias e dissonâncias). Em A Guerra do Fim do Mundo, Vargas Llosa narra a guerra de Canudos através das perspectivas de rebeldes, jornalistas e cidadãos.
Benefícios Epistemológicos:
Ambiguidade Produtiva: Múltiplas perspectivas criam incerteza sobre o que de fato aconteceu.
Profundidade Narrativa: Cada perspectiva adiciona camadas de complexidade. Como no filme Rashomon, de Akira Kurosawa, onde são apresentadas quatro versões do mesmo evento.
Complementaridade e Contraste: As perspectivas devem simultaneamente se complementar (compartilhando certos valores) e contrastar (revelando diferentes posições sociais e interpretações).
6. Palavras como Iscas
Clarice Lispector desenvolve a técnica de usar palavras como iscas. Em A Hora da Estrela, Lispector escreve:
“O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.”
Conceito Central. As partes mais profundas da história não residem nas palavras explícitas, mas no não-dito, no implícito, no subtexto. Similar ao Princípio do Iceberg de Ernest Hemingway, mas com ênfase na capacidade das palavras de ativar compreensões tácitas no leitor.
7. O Símbolo Contra-Intuitivo
Em A Paixão Segundo G.H., Lispector desenvolve sua técnica mais radical: o símbolo contra-intuitivo. A protagonista encontra uma barata, mata-a, questiona a vida, num percurso meio que místico-filosófico, e então a come.
Inversão Simbólica: Lispector transforma um objeto de repulsa universal em símbolo de insight existencial. Esta inversão contrasta radicalmente com símbolos “prontos” tais como:
espelho quebrado = identidade fragmentada
óculos = inteligência